O livro Discurso e Publicidade (EdUFF, 2008, 206p., R$30,00) apresenta a propaganda sob uma perspectiva ainda pouco abordada no Brasil. Para além da produção e da criatividade, Rosane da Conceição Pereira propõe a reflexão e o questionamento do setor, analisando-o como qualquer outro meio de comunicação. Na obra, a autora busca respostas para a relação do brasileiro com a publicidade desde seu surgimento no país e mostra como ela nos representa através do nosso próprio olhar e, ainda, o olhar do estrangeiro sobre nossa cultura. Nessa entrevista, Rosane conta como surgiu a ideia da análise, que representa uma inovação nas relações entre comunicação e linguística.
EdUFF: Como surgiu a ideia dessa pesquisa? Qual era o seu objetivo?
Rosane Pereira: No estudo da publicidade, a história marca o começo da propaganda no Brasil com a vinda da família real e da Imprensa para o país, em 1808. Mas há também uma história paralela, porque já se vendiam coisas no Brasil antes, pela propaganda boca a boca. Na história oficial, a publicidade surgiu com os anúncios classificados e, praticamente, sem imagens. Num segundo momento, apareceu a profissionalização e, num terceiro, o investimento em tecnologia. Isso é o tradicional na história da comunicação. Na pesquisa, eu proponho outras três abordagens: 1) O olhar do brasileiro sobre si mesmo – quando utilizo as propagandas premiadas como exemplo; 2) O olhar do outro, do estrangeiro, sobre o brasileiro – um olhar oblíquo; e 3) O olhar do brasileiro sobre o estrangeiro – no qual os publicitários tentam simular o olhar do estrangeiro sobre a cultura brasileira.
EdUFF: Como se dá o olhar do estrangeiro sobre o brasileiro?
Rosane: Na verdade, o publicitário brasileiro repete o que o outro estrangeiro espera, para que seu trabalho seja visto lá fora. Se ele começar a se colocar como alguém semelhante ao europeu, não haverá esse distanciamento e, talvez, o interesse do estrangeiro pelo trabalho dele.
EdUFF: Em que consiste o estudo da análise do discurso, no livro?
Rosane: Existem algumas teorias de análises do discurso. A que eu utilizei foi a de Michel Pêcheux, que leva em conta a psicanálise, a linguística e o marxismo, considerando não só a língua, mas também o sujeito e a história. A teoria de Pêcheux parte da concretude da linguagem como uma materialidade subjetiva e histórica e, nesse sentido, podemos ter a posição de estranhamento para nós mesmos, ou seja, pensamos, falamos e agimos como se controlássemos sempre esses domínios. Por exemplo, se questionarmos um publicitário por que ele está fazendo isso ou aquilo, é bem possível que ele responda: “Nunca parei para pensar nisso. Eu faço desse modo porque os meus colegas fazem assim”. Ele diz isso porque é um sujeito dividido (afetado) por gestos, atos e chistes de linguagem, os quais irrompem na língua sem que ele seja senhor do seu dizer, ou seja, porque tem a ilusão de ser a fonte dos sentidos naturalizados ideologicamente e dominar (saber) o que diz, quando de fato está submetido à opacidade e incompletude de toda língua. Ao “reproduzir” a maneira de nos dizer e mostrar na propaganda nacional, circulando nos festivais internacionais de premiação publicitária da criatividade, o publicitário brasileiro põe em jogo o que imagina que o estrangeiro pensa sobre o Brasil, mesmo que algumas ideias não sejam ponto pacífico para nós (ritmos, tipos, valores etc.).
EdUFF: Você acredita que a publicidade tenta manipular as pessoas?
Rosane: Isso diz respeito à ideologia e à manipulação, que já é outro questionamento. Como a análise do discurso trabalha com materialismo histórico, a gente destrói aquela ideologia de ocultar algumas ideias e alguns sentidos. Outra vertente diz que ideologia é naturalização dos sentidos, que aqueles sentidos foram naturalizados por uma imposição qualquer e cabe a quem vai desmaterializá-los (o público, o pesquisador, o aluno, o professor etc.) se questionar: “Será que esse é o único sentido possível sobre o que foi dito ou mostrado, dadas as condições materiais de produção (enunciação e circunstâncias sociais, históricas e ideológicas) desse discurso?”, em vez de “Será que essa é a única verdade?”
EdUFF: Existem, realmente, mensagens subliminares nas campanhas publicitárias?
Rosane: Existe muito estudo nessa área da propaganda subliminar. No merchandising – que é aquela apresentação durante uma programação, por exemplo, num programa de auditório –mostra-se claramente quando se faz uma propaganda dentro da programação. Mas, se você assiste a um filme e aparece o nome de determinada marca de produto ou quando o ator a está usando, isso pode passar inconscientemente pelo espectador. Tanto que, passeando no shopping, há quem veja uma roupa que lhe foi apresentada dessa forma e acaba comprando. Os publicitários nem sempre pensam: “vamos fazer uma peça subliminar”! Então, o que é feito, do ponto de vista ético, são pequenas inserções de anúncios nas novelas etc.
EdUFF: Qual é, então, o grau de manipulação da propaganda?
Rosane: A pretendida manipulação da propaganda como “violação psicológica” em pesquisas de regimes totalitaristas durante a Segunda Guerra Mundial e apresentada em Propaganda: teoria, técnica e prática (Armando Sant’Anna, Ed. Pioneira Thomson Learning, 2002, p. 54) é uma ilusão, pois o sujeito, mesmo dividido pelo inconsciente e interpelado pela ideologia dominante da forma histórica do capitalismo, é livre para dizer o que diz de uma maneira e não de outras. Somos “livres” para consumir sentidos existentes (optamos por determinações de mercado com as quais nos identificamos e contra identificamos) e somos livres para nos marcarmos (como sujeitos) na ou pela língua. Podemos construir deslizamentos dos sentidos pelos quais nos “desidentificamos” ao status quo, segundo Pêcheux. Não creio que se possa medir o alcance da mensagem subliminar nem mensurá-la em uma tabela de custos para inserções de anúncios publicitários.
EdUFF: A questão da alteridade influencia o indivíduo na recepção da propaganda?
Rosane: Sim. É a visão do Outro que nos constitui. No terceiro momento abordado no livro, ou seja, o olhar do estrangeiro sobre o brasileiro, trato dessa questão. No carnaval, a gente brinca muito com essa questão através das fantasias, no sentido de mostrar as virtudes que o país tem em termos de religião e culturas diferentes e da estilização de cores e formas, pela qual o outro também vai nos reconhecer. Assim, inconsciente, também somos conduzidos por esse caminho.
EdUFF: Poderia exemplificar?
Rosane: De acordo com Eni Orlandi (pesquisadora da teoria do discurso de Pêcheux no Brasil) em Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico (Petrópolis, Ed. Vozes, 1996, p. 74), o Outro remete ao domínio simbólico do sujeito falado antes de nascer, atravessando todo e qualquer discurso, anterior e não localizável em qualquer indivíduo, o outro social. O Outro simbólico da linguagem existente sobre o que seria o Brasil (paraíso terreno como uma selva com mulheres sensuais; paraíso fiscal para onde se pode fugir incólume; país do futebol, do café e da cerveja; metonímia de Rio de Janeiro, de bossa-nova e rumba em vez de outros ritmos etc.) nos constitui para o outro social, ou seja, o estrangeiro que nos reconhece (nos vê) assim e nós mesmos. Logo, podemos nos contra identificar com a visão do estrangeiro em alguns sentidos (selva, paraíso fiscal ou “levar vantagem em tudo”, rumba etc.), nos identificar (paraíso terreno, mulheres sensuais, futebol etc.) e nos desidentificar fazendo deslizar os sentidos na propaganda. O Brasil superou sua crise econômica e possui grandes escritores, cientistas, músicos, artistas plásticos e pessoas “comuns” que se destacam por sua honestidade e ações sociais (“gente que faz”, “sou brasileiro e não desisto nunca” etc.).
EdUFF: Como é a relação, desde o início, entre o jornalismo e a publicidade?
Rosane: Essa é uma questão técnica, pois inclui os três tipos de discursos da publicidade, que a gente entende como os discursos como efeitos de sentido. O primeiro discurso é aquele da propaganda de boca a boca; o segundo discurso é o da propaganda oficial com a imprensa; e o terceiro discurso é o da propaganda atrelada à tecnologia. No início, a publicidade estava muito subjugada à imprensa, inclusive, existiam apenas os anúncios, com textos escritos nas redações dos jornais, relativos a pessoas oferecendo coisas, cursos, trabalhos ou à procura do escravo fujão. Tudo mudou com o início da xilografia e das gravuras, quando a imagem começou a ganhar maior destaque. Agora, a propaganda já dá forma ao jornal, com design arrojado e interagindo com a matéria.
EdUFF: Para terminar, que característica inovadora Discurso e Publicidade traz para o público?
Rosane: Em publicidade é difícil encontrar teóricos que falem além da história da propaganda. Há muitos livros sobre a própria técnica ou a propaganda em si, como Tudo que você queria saber sobre propaganda e ninguém teve paciência para explicar (Sergio Roberto Dias, Julio Ribeiro e Vera Aldrighi, 434p., Ed. Atlas). Claro, há, ainda, publicações que possuem até um pouquinho da história da propaganda e de psicologia da comunicação, como Criatividade em Propaganda (Roberto Menna Barreto, Ed. Summus), mas nenhuma sob o ponto de vista crítico da semântica discursiva. Acredito que a análise do discurso, adotada em meu livro, seja uma teoria mais condizente para os questionamentos não reducionistas sobre a publicidade.
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